Desengano

29-04-2010 19:11

Eu abro as cortinas pra falar do seu estilo

Esguio o olhar nas guisas e nos contornos

De um olhar preciso de atenção.

 

Ouça atentamente a voz da minha lição

Não sou profeta do passado e nem poeta do futuro

Eu lanço minhas palavras assim, no escuro.

Mas se eu raspo a tua alma e te desnudo

Eu vejo como é capa de revista.

Revista e não encontre nada!

Alma desvendada, raspada por espátulas marcadas.

Existe mais de fora do que do interior

Salve-se exceção de verbos de labor.

 

Sinta amigo, este sabor!

Uma palavra puxa a próxima e a anterior

Como um trem sem destino os versos soam

Mas não viaja por acaso, quer chegar em algum lugar

Veja a fumaça da Maria-Fumaça.

Maria Virgem Mãe do Jesus de Praça

Fé de fácil acesso desfalece e embaça.

 

Desembaça as cabaças das suas traças

A alma é antiga e a mesma há anos

E enxerga em mim com males e desenganos

Mas eu viro pombos e minhocas, gatos e tucanos.

Eu sou um tudo e um nada resumido em simples plano.

Estou com o pé na estrada dos jupterianos.

Amanhã idealizo edifícios de sonhos

E depois eu os engulo na implosão das incertezas

Mas mesmo a incerteza tem lá sua beleza.

 

Se sou, flor, fé e espírito, razão e cobertura

Serei um tudo e um nada resumido em candura

Serei meu próprio déspota, minha própria ditadura.

Eu ergo a minha bandeira cor de nada num mastro vacilante.

A bandeira flui com a ventania e se solta do barbante

O mastro despenca e cai por um instante

Ora chora com o ardor dos injustiçados

Mas sempre levanta e vai, como guerreiro alado.

 

A minha língua está confusa

Está em mim e está em tudo

A minha língua lambe o chão ausente de firmeza

E sente calafrios.

Calos frios e duros da eterna caminhada

Se eu sento eu perco tudo a minha volta

E a minha morada torna-se revolta.

Não serei profeta saudosista lamentando o que não pode.

Não poderei ser o reescritor das histórias dos deuses

E o destino a eles pertencem

Tal como as mentiras, e os desenganos...

 

O coração dói na ferida aberta

Mas o futuro está aí.

Liberdade custa caro.

 

Paga-se o preço e mal se nota o reparo.

Liberdade custa caro

Encarece tudo o que envolve

Encarece os móveis de madeira folhada

As camas bambas de tanto amor e desamor

Encarece os que vão e os que ficam

Que são caros de desilusão e carecem de amor.

Liberdade custa caro.

 

Pague-me o preço e vá-te embora

Torna a voltar-me sem demora

Sem demora eu me vejo no meio de coisas que não vejo

Sem demora eu percevejo

E persevero

E sem demora de tudo quanto eu quero

Pacientemente eu espero.

 

Pobre da alma pobre que deita sobre a alma um olhar estático

E pobre da alma que é nobre, e se deixa prender pelo esporádico

As almas são como os ventos a bater nas montanhas

E as montanhas mal podem observá-los

Apenas sentem.

Sabe-se do vento pelo balouçar das árvores

Mas há montanhas nuas e mortas

E condenadas ao esquecimento.

 

Esqueça por um momento que a vida é um tormento!

E a alma subirá pelas montanhas

E sem crer verá o quanto está acima de toda esta torpeza.

Ó vã mediocridade!

Ó insalubres vontades!

Ó almas como montanhas e desejos como os ventos!

Ventos livres e gélidos

Liberdade custa caro.

 

Liberdade é para raros

E os raros ventos são solitários

As rasas almas sempre se calam

As rosas almas sempre me falam

Dos caros momentos libertários

Dos libertinos sabores dos sacrários.

 

Sacramenta-se o desengano

Que é interminável

E uma palavra aqui puxa a nova

E junta à anterior

O desengano não termina

A vida não determina

E resta-se um dissabor.

 

A vida não determina mais do que a morte nos ensina.

Deixai que a morte em seus túmulos falem por si só

Além por si só,

E que as sentenças sejam da palavra ouvida!

Palavras olvidas valem mais que palavras escritas

Em muros sórdidos de cidades enterradas

Arqueologias falhas, morte sábia da vida que não sabe nada.

Palavras mortas no túmulo

Palavras mortas nos epitáfios dos desmandos.

 

Parti no deserto sem rumo e sem chão

Atrás das dunas eu me escondi.

As retinas cansadas não olham para o céu

O sol queimou os meus cabelos

E deu-me motivos para adormecer...

Adormeci perdido nas estrelas de um deserto embriagado

Ó amizades por insistência!

Não me queixei da não assistência

Assistirei à falência de sua solidão

E depositarei uma flor em seus túmulos

Para que do céu, reconheçam o valor que reconheço.

Apenas do céu.

 

Desengano

 

Caí embaixo dos panos,

Apalpa-me as faces rubras e joviais

A juventude esmorece na alma cândida

A candura me escoa da cabeça aos pés.

Flores nos túmulos sinceros de amigos

Eu espero, ah, como eu espero.

Ferro e fogo, farinha e ervas – daninha.

Vi-os enlouquecer de dores e de paixões

Vi-os esquecer da fome e da miséria

Que põe a gente séria nos caixões.

Encaixotados mortos encapuzados

Segue-se a marcha fúnebre dos desgostados

Desengano.

 

O espelho não me engana

Meus olhos caem com o passar dos anos

A criança olha para o céu e ao futuro

O velho olha para o chão e ao passado

Eu fico preso no estrado.

O espelho não me engana

Desengana.

 

Desenganam

Esqueçam sua irreprensível gana.

Se irreprensível sou deixai-me só

Deixa-me morrer e virar pó

Desengano.

 

Um gato assustado debaixo da chuva

Ainda assim, ele treme, vive!

A chuva passa, o gato se enxuga e pula por cima do muro.

Não há muros suficientes para os gatos

Não há gatos decentes nesse mundo

Um gato debaixo da cama.

 

Desengano

O desengano não termina

Determina o que é fim

A honestidade que surpreende

A sinceridade que extasia

A paixão verdadeira que assusta

E o ser  humano que é humano

E impressiona pela sua humanidade

De ser menos máquina do que homem.

 

--

Matheus Araujo Vieira

 

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