O VOO DA NÃO-EXISTÊNCIA

O VOO DA NÃO-EXISTÊNCIA

        

Levantei-me, ainda sonolento, com aquela espécie de sonolência que nos tira a paz logo nos primeiros instantes intermináveis de uma manhã sem sol. Cambaleei até a pia do banheiro sem saber por quais caminhos havia andado, como se houvesse acordado de um sono profundamente arrebatador, que ignorava todos os afazeres de uma pobre alma mortal ao iniciar seu percurso durante a manhã. O fato é que olhei para aquele objeto refletidor de minha face e não me encontrei naquele que vi. Parecia mais velho, cansado, alguém que eu não conhecia e que, entretanto, minhas entranhas pareciam avistar. Enchi as palmas de água, que escorria tranquilamente pelos vãos dos dedos semiabertos, sem que nada e ninguém pudessem prendê-la. Mesmo que se fizesse uma força extrema, ela estaria ali correndo, se distanciando a cada segundo de um tempo anacrônico que não se pode prender.

Comecei a ver as faces ao meu redor e não entendia o que poderia ter me acontecido. Havia sangue em minhas mãos, sangue no lençol, palmas vermelhas escorridas pelas paredes brancas de meu quarto que mais se parecia com uma sela monástica, usada por muito tempo como prisão de um monge cuja loucura o havia levado a morte. Mas qual seria a relação desse ser arquetípico com minha imagem refletida há pouco no espelho? Seria eu próprio um ser desalmado, vivendo entre todos e ninguém, alheio a todas as coisas ao meu redor, não me importando com ideias marxistas de união e defesa do bem comum?

Tudo isso não fazia sentido, pois as pessoas choravam amarguradas em volta de uma urna de imbuia maciça que trazia dentro de si uma bela moça que estava dormindo. Havia flores ao seu redor e o cheiro de morte inflamava minhas narinas que pareciam ver além de meus olhos, mortos, inefavelmente fechados a uma realidade além da existência. Sentei-me em uma poltrona, ao lado de um casal que conversava baixinho, sem que os outros ao redor notassem sua presença diante do defunto estático. Conversavam sobre a beleza da vida e do amor, o que me deu a percepção surreal de que era a primeira vez que os apaixonados se falavam. Combinaram sair juntos no próximo dia e, provavelmente, iniciariam um romance que começara à beira da morte, ao lado de um corpo sem vida, sem mais nenhuma intenção verdadeiramente palpável de existir.

Ao menos o jardim era belo, e a procissão se iniciara conforme pedia os modos e costumes familiares, aos dizeres de um pai-nosso sem sentido que se perdia no ar, dito monotonamente sem se pensar naquilo que significava cada palavra. A madeira foi descendo devagar, silenciosamente e branda, diante dos rostos desfigurados e malhados pelo dia-a-dia de uma vida ontologicamente sem sentido, sofrida, sem alegria, desmitificada e desmistificada a cada segundo por um nada incondicional.

Não haveria condições de continuar a viver, isso era um fato dado que percebia ali nos meus aposentos, rodeado de sangue e delirantemente desbotado pelo sabor acre de uma amarga solidão. Olhei através da janela entreaberta e os pássaros plainavam livres no ar, estranhos aos meus sentimentos mais profundos, cálice de flor que desabrocha e logo depois se entrega nos braços de um não-viver semieterno, pois existir é apenas mais um ato da minha insignificante vida.

Tomei distância, pensei, estagnado, no que ia fazer. Corri em direção à janela e minha cabeça ficou vazia, de um vácuo impreenchível e, assim, sem pensar em nada, lancei-me contra o vidro de minha liberdade e voei como os alheios pássaros em direção de uma eterna não-existência indecifrável.

 

 

Thiago Maerki

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